terça-feira, 4 de dezembro de 2007

" Consciência Negra "

O Resgate Histórico e a Condução das Massas

Somos um povo de muitas raças. A minha, em particular, é branca, caucasiana. Descendo de portugueses da velha cepa, anterior à dominação romana. Mais velha que a conquista da península pelos árabes e muito mais antiga do que a dos povos bárbaros que dominaram a Lusitânia depois da queda do Império Romano.
Convivo muito com o sangue oriental que aqui aportou no primeiro navio, o Kasato Maru, em 1908, com 165 famílias de japoneses pobres para trabalhar nas prósperas fazendas de café do estado de São Paulo. Comeram o “pão que o diabo amassou”, pelo que diziam meus avós. Também com os descendentes de colonos alemães de logo após a primeira guerra mundial e de italianos do final do século XIX. Cadinho de povos que, com árabes, castelhanos e galegos, bem como os de origem africana, muito bem se misturaram com o autóctone e geraram o continente racial brasileiro.
Recebemos menor número de imigrantes que os Estados Unidos, por exemplo. Mas não há paralelo entre a colonização do Brasil e a do grande país do Norte. Ambos receberam enorme contigente escravo, de cuja mão de obra se valeram para o desenvolvimento da economia, de forma a permitir o povoamento dos rincões mais distantes. Ambos os tipos de colonizadores avançaram sobre as terras desconhecidas e combateram e exterminaram cruelmente as populações autóctones.
Em um livro famoso, ”Bandeirantes e Pioneiros”, tempos atrás, Viana Moog buscava explicação para a diversidade de resultados da colonização norte-americana e brasileira em termos das diferenças entre os propósitos do pioneiro inglês, que vinha ao Novo Mundo se estabelecer com sua família, e os do bandeirante português, que cruzava o interior brasileiro na busca de escravos e ouro. O pioneiro conquistava um continente para construir uma nova pátria, enquanto o bandeirante, longe de ser um herói, como os laureados pelos poetas (Olavo Bilac celebrou Fernão Dias) não passava de um predador, cuja única preocupação era a de se enriquecer, o quanto antes, para voltar ao Reino, com as burras cheias.
Tanto lá como cá, a sociedade tem uma dívida de honra para com os negros. Foram eles e não outros, que nos serviram como meio de produção, na época em que não havia máquinas, nem energia elétrica ou a vapor e pouquíssimos animais de tração. O trabalho escravo fez a economia tanto das Treze Colônias, quanto a do Império do Brasil.
Lá, a Guerra da Secessão ensangüentou as colônias, e foi o batismo de sangue da libertação dos escravos. Sacrificou um presidente, Lincoln. Cá, uma princesa européia, Isabel, de sangue da maior nobreza, outorgou a libertação. Não custou a vida, mas pesou para a perda da coroa e para a instalação do Regime Republicano.
Proclamada a República, nada mudou para o povo. Os antes deputados do Império voltaram à Câmara, agora, como deputados da República. Os títulos de nobreza foram respeitados e, depois, gradualmente substituídos por graduações militares. A “Guarda Nacional” substitui a hierarquia aristocrática. Daí o regime dos coronéis.
Pode se dizer que, para a massa popular, a proclamação feita por Deodoro na Praça de Santana em XV de Novembro, não passou de autêntica demagogia. Demagogia é termo grego que na sua expressão primitiva significava uma forma de condução, de liderança do povo, sem qualquer sentido pejorativo. Assim eram demagogos homens como Sólon, Péricles e Demóstenes, intimamente ligados à defesa da democracia. Mas Aristóteles, mesmo, é que dizia que, da mesma forma que a política aristocrática conduz à tirania, como sua caricatura, a demagogia é forma extremada e também caricata da democracia. Até que a expressão ganhou novo sentido.
Assim é que demagogia passou a ser uma forma sutil de enganar. De fazer passar por boa uma idéia, um projeto, ou uma ação, que não sendo má, será simplesmente inócua. Após a morte de Péricles surgiram novos líderes atenienses fortemente criticados pelos adversários dos modelos democráticos. Por causa deles é que a expressão ganhou a conotação atual: aquela de ação que procura dar vez, bajular e agradar as massas, atendendo-lhes aos medos, aos preconceitos, ás esperanças e socorros imediatos. Ou, para dar sentido mais pejorativo, como sendo a arte de conduzir habilmente as pessoas ao objetivo desejado, utilizando os seus conceitos do que lhe seria melhor e de seus desejos, mesmo sabendo que os resultados lhes serão contrários. Convém lembrar novamente de Aristóteles (Política, livro V), onde acentua que o demagogo utiliza a lisonja e os artifícios oratórios para conduzir o povo no sentido dos seus (dele) propósitos pessoais. Atestando a existência dessa prática política, sabe-se que, ainda no século XIX, Lincoln assinalava ser possível enganar uma pessoa uma só vez; mas impossível enganar alguém o tempo todo ou a todos, de uma vez.
Aqui, entre nós, a demagogia se institucionalizou. Tanto entre os políticos, como nos meios de comunicação. Estamos repletos de ações aparentando ser de boas intenções, mas que se não prejudiciais, são no mínimo inócuas. Nesse contexto os legisladores suprimiram do Código Civil a expressão homem, como sujeito de direitos e substituíram por pessoa, para que não soasse “machista”. Outros criaram cotas para as mulheres, garantindo-lhes vagas nos quadros de candidatos de cada partido, iludindo as feministas de plantão de que isso as levaria à eleição. Vagas essas que não costumam ser preenchidas e, quando o são, não asseguram sucesso nas eleições proporcionais, que depende de votos individuais. Passaram a ser colaboradoras de votos para os pequenos partidos e seus demais candidatos.
As cotas para deficientes físicos no serviço público e na iniciativa privada fazem com que, no primeiro caso, caia a qualidade da prestação de serviço num país, que mesmo as pessoas plenamente válidas não gozam de pleno emprego. No segundo, que, entre empresários, passe a ser objeto de negociação a bolsa de funcionários com menor deficiência, sempre em detrimento do custo financeiro que, como se sabe, reverte finalmente ao bolso do consumidor.
Não queria falar de cotas nas universidades públicas, que poderão levar essas excelentes casas de ensino ao sucateamento, em virtude da menos excelente qualidade dos candidatos escolhidos, mas falei ! Enquanto isso, pessoas igualmente pobres, cujos antepassados vieram para o Brasil como grumetes ou servos dos navios, deles tendo fugido, e não como escravos, da mesma forma que antes, não terão acesso às universidades públicas porque o sacrifício dos avoengos não foi celebrado no panteão da pátria.
Quanto aos escravos brasileiros, é preciso ler os viajantes do Século XVIII e XIX para que se perceba, no contexto histórico que, afora a condição jurídica de “não pessoa” na sociedade, do tratamento de “coisa”, que lhe dava as “Ordenações do Reino”, tinham vida melhor do que viviam no próprio continente africano. Saint Hilaire, humanista de carteirinha, dizia que tinham vida melhor do que o camponês da França, daquele tempo (Viagem às Nascentes do São Francisco). Se pensarmos que nos próprios quilombos, como no dos Palmares, sua hierarquia contemplava o poder de uma liderança negra escravocrata e no piso social também havia escravos, começaremos a encarar o passado com os olhares da época.
O sentimento de reparação ao sofrimento trazido com a escravatura clama por reparação das injustiças. Há uma comoção nacional que tomou conta não só do sentimento religioso do povo, mas de grande parte da intelectualidade, da mídia, da classe política e, - porquê não dizer? - da comunidade negra. Com este sentimento vieram as leis.
Não há reparação que se faça às injustiças do passado. A Espanha jamais poderá reparar o morticínio que Cortez e Pizarro implantaram com o extermíno dos Aztecas ou a execução de Montezuma e Tupac Amaru, nem os EUA da América poderão reparar as mortes de Hiroshima e Nakasaki. A morte de Zumbi não é diferente da morte de Viriato, na Serra da Estrela. Por dez anos o herói luso sustentou uma guerra contra os invasores romanos. Derrotou-os por diversas vezes nas campanhas. Era letrado e tinha conhecimento da religião antiga dos celtas. Mas foi traído e morto por seus generais, a mando de Quinto Servílio Cipião. E com ele também foi subjugada a Lusitânia. Não há reparação para a perda dos valores religiosos, culturais, econômicos e históricos que se abateu sobre Portugal. História é isso. Constrói-se com vitórias, derrotas, massacres e prejuízos irreparáveis. Não há reparação para a morte de Zumbi e de Viriato. Fizeram-se líderes de povos e assumiram uma luta pela qual sucumbiram. Se tivessem vencido, a história seria narrada diferentemente. Talvez lamentássemos pelo romanismo perdido, ou pelo país dos Palmares, à parte da Paraíba.
Assim é que não se justifica a celebração da “consciência negra” como feriado nacional, nem da “consciência céltica” se justificaria entre nossos avózinhos de além-mar. São fatos de importância histórica os que são celebrados no dia 20 de novembro, mas não mais importante que o 13 de maio. Em 1888 a revolução abolicionista destruiu o modo de produção escravista colonial através de Resolução da Câmara de Deputados conservadores, composta, na sua imensa maioria, por proprietários e fazendeiros. Os critérios para alcançar a Abolição eram objetivos dos deputados das últimas legislaturas do Império. Foi a reivindicação da liberdade civil que uniu a luta dos cativos rurais à dos cativos urbanos, pouco representativos, com a sociedade civil, então senhorial.
Mas os representantes da “consciência negra” são órfãos da ausência de um cadafalso ou de uma guilhotina. Não se conquistou a liberdade com sangue, nem através da luta. Não aconteceu como com Luís XVI e Maria Antonieta, em 1789, nem como com os Tudor, na Inglaterra, ou no caso da família do Czar Nicolau, na União Soviética, em 1917. À falta do sangue redentor, venha a substituição do fato histórico de real importância, a abolição, pelo da guerra perdida do Rei do Quilombo frente o bandeirante paulista, que é importante muito mais pelo mártir que foi criado, do que pelo resultado histórico.

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