quarta-feira, 7 de novembro de 2007

QUILOMBOLAS: Carta Aberta a Xico Graziano



Caro Xico Graziano,


Não deixo de ler nenhum de seus inteligentes artigos. Hoje, no portal Agrodireito, detive-me por mais tempo no assunto em epígrafe, os quilombolas.

Para a Constituição Cidadã, expressão de Ulisses Guimarães, havia necessidade de se fazer a reparação de injustiças históricas para com a população que fugiu do regime escravagista e, embrenhadas nas matas ou fechadas em verdadeiros guetos urbanos manteve sua cultura, suas tradições, usos e costumes. O Quilombo dos Palmares é o mais conhecido deles, no Brasil. Em Minas, o Quilombo do Ambrósio, na Serra da Marcela e o de Campo Grande, na região do Rio Grande, fizeram história também. Como caiu Zumbi, diante de Domingos Jorge Velho, também os grandes quilombos de Minas Gerais tiveram de enfrentar as tropas do Vice-Rei e do Governador das Minas, sendo arrasados. O Conde de Assumar morria de medo ao ouvir falar na resistência negra dos Quilombos.

Mas não só de negros fugidos se fizeram esses. Alforriados, libertos do “ventre livre”, brancos sem recursos, fugitivos da Justiça se reuniram nessas povoações. Pessoas de bem somente eram considerados os habitantes dos perímetros urbanos. Garimpeiros e vadios, gente do mato, era como os chamavam os reinóis, habitantes das cidades. Muitos paulistas, derrotados na Guerra dos Emboabas, engrossaram a horda de habitantes desses sertões. As autoridades denominavam-nos de facinorosos e os combatiam a pretexto de assaltos a viajantes, mas principalmente porque viviam à revelia do fisco, não recolhendo os tributos régios. A considerar o número de miúdas povoações em torno das vendas, onde se comercializava toucinho, aguardente, sal, açúcar, farinha e pólvora, quase todas as terras que não fossem de sesmarias, nem fossem despovoadas seriam terras quilombolas. Os aldeamentos de resistência, estes sim, eram reforçados e se constituíam nos abrigos desse povo. A eles é que se chamava de quilombos. Na região do Alto São Francisco a decadência da mineração criou inúmeras comunidades com esse nome. Existem topônimos semelhantes em quase todos os seus municípios. Alguns com registros de lembranças remotas de negros fugidos, mas na maioria deles só restou o nome para identificar a origem do casario. De um modo geral, a liderança dessas comunidades era de alforriados, mestiços ou contrabandistas (de pedras e de secos e molhados).

Os quilombolas fizeram parte, assim, de uma guerra de conquista. Depois que o indígena foi dominado e cedeu seu espaço para os colonizadores, cresceu a miscigenação destes, não só com o gentio, mas com a população escrava, e dos negros com indígenas e, por sua vez, desordenadamente também ocuparam as terras dos sertões. Assim, pelo menos em Minas, os quilombolas eram pessoas em enfrentamento com o poder do Reino. Perderam as batalhas e foram assimilados ou exterminados. Ambas as hipóteses são verdadeiras, mas a primeira foi majoritária. No entanto, a assimilação dos sertanejos não é fenômeno histórico empolgante, a satisfazer o gosto dos sociólogos e antropólogos. Esses, de um modo geral, guardam consigo fortes sentimentos ideológicos.

A nossa cultura, caro Graziano, adotou por heróis os mártires. Felipe dos Santos, pobre e desventurado garimpeiro luso, sem recursos, sem títulos e nome de fidalgo, só porque foi despedaçado por cavalos bravos virou herói nacional, tido por líder que não foi de uma revolta de ricos mineradores que sequer foram investigados (Sedição de Vila Rica). Sentimento de adoção esse que despreza a abnegação, por exemplo, a grandeza de um Amador Bueno, “o homem que não quis ser rei”. Fiel a esse apego ideológico, as batalhas de conquista dos quilombos fortalezas, como o da Serra da Barriga ou o da Serra da Marcela viraram paradigmas da crueldade do branco contra a população negra. Mesmo não sendo só de negros fugidos a composição dos quilombos, como já se disse. Nem havia só uma guerra de conquista e escravização, mas luta pela ocupação dos sertões e também pela sobrevivência dos decaídos da esgotada mineração. Tudo isso deve ser historicamente examinado e considerado dentro dos costumes e sentimentos da época. É como a Inquisição, ou o Iluminismo, que só pode ser bem compreendido à luz da cultura, ética e conhecimento do tempo em que ocorreram. Não se pode analisar o julgamento de Joana d’Arc, ou de Galileu, à luz do direito atual.

Mas a Assembléia Nacional Constituinte quis atender reclamos da consciência nacional de havermos, de forma injusta, buscado na África tantos desgraçados para desenvolver a produção da, então, colônia portuguesa. Os ingleses, que tanto lucraram com a mineração e o comércio com o Reino e que foram os verdadeiros caudatários das riquezas aqui exploradas pela mão de obra escrava, só porque, a partir do “Aberdeen Act”´(1845) demonstraram resistência ao tráfico negreiro, nenhuma dor de consciência esboçam. Seus heróis são os de Carlyle, não os nossos.


Sob influência dos movimentos de valoração da raça negra, e assistidos pelo antropólogo Clóvis Moura, os Constituintes buscaram resgatar valores aos descendentes dos povos africanos, que tiveram, sem dúvida, grande influência na nossa vida econômica e cuja expressão deve ser restabelecida. Voltamos à regra disposta no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que assegurou reparação histórica aos afro-descendentes que estivessem sob determinada e prevista circunstância, como se vê: - "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".A análise da expressão compete aos agentes políticos que, como se sabe, elaboraram a Constituição da República a partir de um sentimento pluralista de necessidade de fornecer à Nação um mecanismo novo de respeito à liberdade, às tradições, aos direitos humanos, aos sentimentos vários da sociedade, mas proporcionando segurança jurídica para todos. Daí o fenômeno das influências ideológicas e o surgimento do chamado “Centrão”, que fez com que predominasse na redação final do texto expressões aparentemente dúbias e outras imprecisas. Mas isso é análise para constitucionalistas. A análise do alcance jurídico também refoge à minha pretensão, mas os juristas consultados me afirmam que nenhuma lei pode ampliar os conceitos claros da Constituição. “Remanescente das comunidades de quilombos” são pessoas que resistiram à modernização, com sua cultura e modos de produção tradicionais. Apesar disso, no contexto, a referência é a um pleito de natureza fundiária, mas tem como pano de fundo não o tema da reforma agrária, mas a discussão sobre uma dívida, e seu resgate, que a nação brasileira teria para com os afro-descendentes em conseqüência da escravidão e o forçado tráfico de pessoas, desde a África. O conceito de quilombo fixado pelo Conselho Ultramarino Português, em 1740, era o de agrupamento de negros fugidos, mas o tempo se encarregou de modificá-lo, como se viu, transformando em denominação genérica para aglomerado de pessoas, fora das cidades, ao largo da lei e do regime fiscal. Assim chegamos à preocupação do que viria a ser “suas terras” ocupadas por remanescentes. Historicamente seriam as chamadas “terras de preto” ocupadas por afro-descendentes, conforme situações as mais diversas, principalmente se decorrentes da reorganização da economia brasileira, logo após o fim da escravidão, em 1888. Certos que nessa ocasião não apenas os afro-brasileiros estão envolvidos no processo, mas toda a gente pobre, sertanejos, de um modo geral.Buscando alargar o conceito de quilombolas, a partir de estudo feito pela Associação Brasileira de Antropologia, atendendo ao Ministério Público Federal e movimentos ideologicamente comprometidos, alcançou-se o sentido que se dá hoje, de modo a abranger os habitantes de povoados que apresentem características étnicas, históricas e culturais, assim como necessidades sociais que justifiquem um tratamento especial, como sendo remanescentes de antigos quilombos. Essas povoações, como se disse, foram constituídas não somente por escravos fugidos do eito e da mineração, mas também por forros, mestiços, brancos fora da lei e pobres diversos que de alguma forma adquiriram terras e ali desenvolveram suas comunidades, dando início a várias gerações.Mas a Constituição diz que são os remanescentes dos quilombos que estejam ocupando suas terras que são os destinatários da norma (grifei). Não pode haver interpretação diferente se não a de que se refere o texto às comunidades de quilombolas de posse das terras naquela oportunidade da promulgação. Mas os ideólogos de plantão convenceram o Governo Federal a, através de decreto, estipular arbitrariamente o que é um “quilombola”. Ora, o referido decreto, que é objeto de uma ação de inconstitucionalidade no Supremo, autoriza a auto intitulação. Ou seja, por ele, a própria comunidade se intitula remanescente de quilombo e assim se cadastra perante a Fundação Palmares. Esta, depois de laudo antropológico em que confere os itens referidos pela Associação Brasileira de Antropologia, encaminha a pretensão ao INCRA, que, por sua vez, dá início a processo desapropriatório, se a terra pertence a particulares. É forma nova de desapropriação, independentemente da produtividade da terra e de estar ou não sendo aproveitada, bem como se exercida a função social da propriedade. Ora, a Fundação Palmares, a Associação Brasileira de Antropologia e o INCRA, de hoje, só se justificam perante seus respectivos ministérios, se agem em irrestrita defesa da desapropriação e de combate à iniciativa privada. Se não o fazem, seus membros estarão em risco, diante do policiamento ideológico marcante, dos dias atuais.Assim, meu caro Xico Graziano, nem todo quilombola seria negro, da mesma forma que nem todo negro é quilombola ou descendente. Apesar de tudo isso, através de decreto (o que é juridicamente discutível) foi ampliado o alcance da norma constitucional. As comunidades que ocupavam terras devolutas e seriam destinatárias da regra seriam menos de cem, na época, mas como diz você, hoje parece que já são perto de cinco mil. E como ficam os miseráveis descendentes dos capitães-do-mato, dos escravos domésticos, dos vendedores ambulantes da Colônia, retratados por Debret, e do carrasco Capitania, o escravo que enforcou Tiradentes? Para esses, parece que não há resgate. Ou será que, no devido tempo, haverá outras indenizações a custa da iniciativa privada ?

Um comentário:

Unknown disse...

somente agora li, e confesso que gostei muito de sua colocação.abs.