quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A Dama da Noite, o Ouvidor Agrário e o Coronel : Carta aberta a Marta Sousa Costa




Cara Marta,

Desde que tomei conhecimento de sua crônica sobre os fatos ocorridos em Pedro Osório, do envolvimento do MST, da Ouvidoria Agrária Nacional e da Brigada Gaúcha, nas páginas do site: http:www.agrodireito.com.br, passei a conhecer e freqüentar o seu blog: http://www.martasousacosta.blogspot.com/, onde tenho lido seus excelentes trabalhos, para meu deleite e admiração.

Não preciso lhe dizer o quanto são saborosas as suas crônicas. Seus leitores o fazem constantemente. A mim, elas transmitem a sensação que estou lendo, se escrevesse ainda, a minha amada professorinha do primário ou, com alguma pretensão, o que escreveriam, se entre nós estivessem, minhas tias, minha mãe ou minhas irmãs a propósito do cotidiano. Quando, então, fala de sua querida Pelotas, do seu povo, das suas tradições um pouco perdidas na modernidade de hoje, parece-me que fala sobre as minhas mineiras tradições do velho e bom Campo das Vertentes. A descrição das ruas assobradadas, dos jardins de lírios e de rosas e das damas da noite plantadas à beira da rua, brindes aromáticos aos passantes desde o entardecer, condiz com o carinho e a simpatia de alguém da família. Por isso me permita o tom coloquial da missiva.

Na verdade, Marta, a sua surpresa diante dos fatos que presenciou na frustrada reunião com a Ouvidoria Agrária, narrados na crônica “O MST em Pedro Osório”, não corresponde aos sentimentos de quem, como eu, observa os desmandos, o desrespeito e a arrogância de membros de instituições que elegeram os “sem terras” como paradigmas de um novo tempo e de uma nova sociedade solidária.

Há algum tempo que eu os acompanho. A princípio andei curioso de seus avanços e admirei como alcançaram (falo dos ativistas) espaço e consideração da mídia. Parecia-me, realmente, a alvorada de um novo tempo, principalmente para quem, como eu, no passado, fui preso político, em 1964, porque defendia ardorosamente a Reforma Agrária.

Porém, a Reforma Agrária, Marta, há quarenta ou cinqüenta anos parecia uma necessidade para aumento da produção e fixação do homem no campo. Éramos um povo rural. A cidade era atraente, mas a vida do campo ainda tinha seus fascínios. As terras eram ociosas e mal exploradas. Nem o fazendeiro retirava delas um percentual razoável do que podiam produzir, nem o homem do campo, meeiro ou parceiro, se interessava no implemento da produção. Havia problemas de transporte e escoamento dos produtos, de forma que esses eram geralmente destinados às próprias regiões. Naquele contexto, a reforma agrária e a agricultura de subsistência (da qual nunca fui grande admirador) se justificavam. As grandes extensões de terras ociosas clamavam por medidas legislativas e judiciais adequadas.

Hoje, no entanto, passado meio século, o agronegócio é a locomotiva que arrasta os demais vagões da economia. A grandeza territorial do Brasil cultivado, das lavouras valiosas e da pecuária extensiva é o principal valor capaz de alavancar o país desse estágio desenvolvimentista para alcançar o clube das nações mais influentes do Mundo. Nesse contexto, a pretensão de Reforma Agrária como pretendem intelectuais e ativistas é, no mínimo, um retrocesso. E mais, em algumas circunstâncias, quando se trata de órgãos públicos, é de uma irresponsabilidade pusilânime, enquanto no que toca aos militantes, as ações por eles praticadas são verdadeiros crimes.E o pior, nesses casos, é a conivência oficial: – por que não dizer ? – a cumplicidade do Estado.

O homem já se encontra na cidade e poucos são os remanescentes do meio rural que pretendem terra para plantar. A rigor, querem terra para especular. Vender quando puderem, não sem antes receberem cestas básicas por alguns anos e financiamentos a fundo perdido. São militantes por opção, ativistas habituais, profissionais. Se por um lado percebo seus atos ilegais como reflexos de uma sociedade fragil que ainda engatinha, essencialmente desigual e que tem ainda muito a evoluir, noutro ponto os vejo desvirtuados ideologicamente dos principais escopos da luta pela terra nascida naquele passado a que já me referi. Atualmente, nem mesmo o MST acredita na Reforma Agrária, que não passa, hoje, de um pretexto para mobilizar pessoas para o combate ao sistema político atual (vide in http:www.agrodireito.com.br, o editorial: “Reforma Agrária, Hoje, Não é Mais Que Uma Palavra de Ordem”).

Assim, não me surpreende que a reunião de Pedro Osório tenha sido frustrante para quem, como você, ainda crê num mundo de fidalguia, onde pessoas escolhem o local mais próximo dos transeuntes para as plantas aromáticas, que lhes cumprimentam a passagem contumaz.

Ao contrário de você, há muito conheço a Ouvidoria Agrária Nacional. Se alguém quiser saber sobre sua atuação, basta ler o relatório da CPI da Terra (relator: Deputado Abelardo Lupion, uma vez que o relatório oficial do Deputado João Alfredo, do PSOL, foi derrubado em plenário) para se perceber o comprometimento desse órgão do Ministério do Desenvolvimento Social com os militantes das irresponsáveis invasões de terra, que tanta insegurança jurídica proporcionam.

No entanto, em Minas, há notícias várias da intromissão do Ouvidor, natural de Uberaba e Desembargador aposentado, até mesmo em atos do Judiciário, tentando constranger juízes e interferindo na conduta da Polícia Militar. Há um caso emblemático em que o cumprimento da ordem judicial de um Desembargador do Tribunal de Justiça foi interrompido por ação da Ouvidoria. Nesse caso, o Ministério Público, sob sua influência, chegou até mesmo a mover ação penal contra o Coronel Comandante da Região Militar de Montes Claros, alegando conduta ilegal da Autoridade. O site da Pastoral da Terra Nacional dá a versão dos Sem Terras:

“ A Polícia Militar foi acionada pelo fazendeiro. Numa clara demonstração de eficiência em favor do latifúndio, em pleno domingo de maio cerca de 60 homens fortemente armados, 14 viaturas, com escopetas, bombas de gás lacrimogênio, cães (vindos de Montes Claros) e 1 helicóptero (deslocado de Belo Horizonte), realizaram ilegalmente a desocupação da fazenda, sem posse de mandado judicial. O Governo de Minas, através da polícia militar, mais uma vez demonstra para a sociedade a forma com que trata o povo que luta pelos seus direitos”. (http://www.cptnacional.org.br/)

No entanto, consta do processo que os fatos ocorreram de forma bastante diferente, como descreve o Juiz da causa ao Desembargador Pedro Bernardes, em peça a que tive acesso. Diz S. Exa. que havia ordem de desocupação emanada do Tribunal e que, por ele ou pelo Juiz Deprecado, teria sido cumprida, não fosse a interferência da Ouvidoria Agrária, junto à PolíciaMilitar. Vejamos:

”11. Em 08 de maio último, esse Juízo recebeu ofício 30.919-02/06, do Cel. Comandante do Estado Maior da Polícia Militar, que em resumo trata do seguinte. – Diz que a P.M realizou o planejamento para dar cobertura aos oficiais de justiça em operação de desocupação da área designada para o dia 03 de maio de 2006. No entanto, em 28 de abril recebeu ofícios do ITER, do INCRA, da Ouvidoria Agrária Nacional e do Ministério Público de Minas Gerais, solicitando a suspensão da operação diante de compromisso formal dos “acampados” desocuparem o imóvel até o dia 30 de junho de 2006. No referido ofício do MP (fls. 314/315) há insinuação de que o Cel. Comandante da 3ª RPM desconsiderando o procedimento de mediação coloca em risco a segurança de militares, trabalhadores e sociedade civil.”
...
“Em 12 de maio veio ter aos autos comunicação da Ouvidoria Agrária Nacional, confirmando sua intervenção junto ao Estado Maior da PM de Minas Gerais.”

E arremata o juiz:

“15. Já relatei informalmente ao Em. Desembargador Pedro Bernardes que não houve de parte deste Juízo, nem do Juízo Deprecado desídia alguma quanto ao cumprimento da ordem do Egrégio Tribunal. Também respondi a telefonema do Estado Maior da PM (Major Jader) informando que a ordem de desocupação não se encontra suspensa e que, a meu ver e conforme transmitido à Segunda Instância, não cabe ao M.P., estadual ou federal, nem à Ouvidoria Agrária ou INCRA, nem ITER ou Polícia Militar suspender a ordem do Egrégio Tribunal de Justiça.

16. Da mesma forma respondi ao Ilustre Comandante da 3ª Região da Polícia Militar, de que restasse tranqüilo, pois as insinuações ou imputações que contra si foram feitas junto ao Comandante Geral não guardam aparência de serem verdadeiras ...”

Como se pode ver, longe da neutralidade que se espera de um desembargador aposentado (e essa qualificação profissional deve ter influído na sua escolha), a conduta do Ouvidor Agrário Nacional, sempre acompanhado de dois seguranças armados, tem sido de favorecimento aos que, em desrespeito à lei, colocam em xeque a ordem e o direito.

No caso específico da ação policial a cargo dos militares de Montes Claros, como se vê, sequer o Estado cumpriu o seu dever no momento próprio, tendo S. Exa., com sua atitude, praticado ação vedada por lei e conceituada como sendo de prevaricação, ou de obstáculo à Justiça.

Mas isso, cara Marta, é visão pessoal minha e de outras pessoas conhecedoras dos fatos, afeitos que somos às decepções que a vida nos reservou. Não caberia, mesmo, no seu poético espaço de cronista elegante, juntar esses desmazelos de conduta à fidalguia com que trata do seu cotidiano.

A sua doçura de prosa literária quase faz com que, até eu, me sinta meio culpado de você não ter sido prevenida contra esse tipo de gente. Tem toda a minha simpatia.

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